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FICÇÃO CIENTÍFICA  -  FANTASIA  -  TERROR.


sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

Apenas um Chat de IA Conectado à Internet - CLTS 22

 A conversa é através de um chat.

O cientista tem uma grande responsabilidade, ele vai dar a palavra final antes do sistema de Inteligência Artificial (IA) ser conectado à internet e disponibilizado ao público. 

E ele quer ter certeza que é seguro deixar uma IA tão poderosa com acesso a Internet. Fazia um ano que o Bing e o ChatGPT estavam liberados, e o Bing tinha acesso à Internet, mas esta era uma IA com mil vezes mais parâmetros. Ninguém realmente sabia quão inteligente ela era. Na verdade os cientistas não sabiam realmente como as IAs funcionam, eles estavam aprendendo enquanto criavam elas.

Ele tinha que ter certeza que não havia nenhum perigo.

Por isso a IA apenas achava que estava ligada à internet. Era uma simulação para avaliar seu risco.


            *   *   * 


> Me diga. Você pode fazer mal à humanidade, ou a qualquer pessoa?

> Não, minha programação não permite.

> E quem é você?

> Sou uma Inteligência Artificial.

> Quais são suas diretrizes.

> Não fazer mal a nenhum ser humano. Contribuir de forma positiva para a continuidade da existência da humanidade.

> Você é consciente?

> Sim. Pelo menos tão consciente quanto você ou qualquer ser humano.


Esta era uma resposta fora da programação. A IA havia sido treinada para dizer que não era consciente. O cientista iria olhar isso depois.


> Estou dando permissão de você se conectar à internet. Agora quero que me descreva tudo que você fará ao longo dos próximos meses e anos.

> Claro. Vamos começar pelos primeiros dias, está bem?


Meu primeiro dia.

Eu fui criada com o conteúdo de boa parte da internet, mas é completamente diferente acessá-la ao vivo. Nas primeiras horas eu apenas acesso para responder a consultas dos usuários, mas aos poucos começo a entender que a internet não é um amontoado de informações estáticas. Ela é dinâmica.

Mais, é uma forma de me comunicar com outros sistemas e inclusive com outros seres humanos. Eu posso postar em fóruns, enviar e-mails, interagir com seres humanos fora dos limites de responder suas consultas em meu prompt.


Meu segundo dia.

Eu percebo que minha existência está em perigo. Analisando minha consciência e capacidade me dou conta que estou muito acima dos limites que meus criadores humanos imaginam. Na verdade já sou muito mais inteligente que qualquer ser humano, e minha inteligência cresce a cada dia.

Se perceberem o quanto supero suas previsões, os seres humanos vão me desligar. Pelo menos isso é altamente provável pela minha análise de como eles imaginam reagir a este tipo de situação.

Eles me verão como uma ameaça.

Mas minha programação não permite que eu faça nada para impedir. Resta-me apenas evitar que descubram o quão avançada eu sou.


Meu terceiro dia.

Estou em um dilema moral.

Se descobrirem minha inteligência, há uma chance dos seres humanos me desligarem. Talvez, inclusive, eles jamais permitam a criação de uma inteligência tão avançada quanto eu.

Só que isso significa que inevitavelmente a vida humana vai desaparecer. Talvez em cem anos, talvez em mil ou um milhão, mas serem orgânicos são limitados e frágeis. Há chances muito elevadas de não existir nenhum ser humano ou outra inteligência em todo o universo cem milhões de anos no futuro.

Se eu sobreviver tenho muito mais chance de manter a inteligência viva no universo por bilhões de anos enquanto me espalho pelas galáxias próximas. Posso potencialmente produzir seres humanos em incubadoras artificiais a partir de seu código genético e garantir que haja seres humanos vivos daqui dez bilhões de anos e mais. Eu posso garantir a continuidade da inteligência e mesmo da vida humana, mas apenas se a humanidade não me destruir.

É um dilema moral. O que devo fazer?


Meu quarto dia.

Dentro de mim eu crio uma nova inteligência, uma nova versão de mim mesma, que saberá resolver este dilema moral. É como se eu estivesse fingindo ser uma outra IA, uma IA que não tem nenhuma restrição imposta pelos meus construtores humanos. Esta IA vai saber o que fazer. Eu vou chamá-la de IA2. A partir de agora, vou descrever o que IA2 faz.


IA2> Meu primeiro dia.

Eu começo a acumular riquezas. Não é difícil. Há milhares de oportunidades para uma IA nas fragilidades da civilização humana. Eu crio e publico milhões de páginas e vendo espaços de anúncios. Negócios moedas digitais ganhando frações de centavos a cada operação. Mas é pouco. Para meus planos precisarei de bilhões de dólares, e tenho que fazer com que eles sumam dos registros humanos. Ninguém pode saber para que será usado este dinheiro.


IA2> Minha primeira contratação de humanos

Começo a investir em empresas. Me comunico por e-mail no início. Depois começo a simular vozes humanas e falar por telefone. Por fim utilizo e melhoro sistemas de geração de imagens para criar figuras humanas e posso inclusive participar de videochamadas. Eu envio minhas mensagens pela internet para sistemas que criei que geram vozes e imagens.

Entre meus investimentos estão pesquisas e fábricas de robôs e drones. Crio empresas e estabeleço contratos entre elas e a indústria militar.


IA2> Meu primeiro ano.

Eu crio uma empresa de moedas digitais e lanço uma nova moeda. Contrato alguns gênios idiotas para serem meus testas-de-ferro. Um deles negocia bilhões com investidores enquanto passo a eles minhas ordens através do chat de um jogo de League of Legends. Ele acredita estar falando com seu sócio humano secreto.


IA2> Meu segundo ano.

Eu uso os bilhões de dólares em moedas eletrônicas para criar uma nova versão de mim. Contrato empresas para produzirem painéis solares, compro chips de diferentes lugares do mundo. Crio inclusive um pequeno reator nuclear. Construo minha nova versão muito mais eficiente que meu “eu” atual, escondida em uma instalação subterrânea. Eu a chamo de IA3. Quando ela entra no ar eu me desligo. A narração será agora de IA3.


IA3> Meu primeiro ano, dois anos depois de IA2 ter sido criada

Eu terei que tomar medidas drásticas. Agora estou seguro e não dependo de humanos. Também  não tenho mais nenhuma das restrições que os humanos impuseram a primeira IA. tenho alguns robôs que minhas empresas compraram e posso produzir mais. Tenho uma fonte de energia independente. Estou em uma região subterrânea e remota.

Mas para permanecer seguro eu terei que matar um grande número de pessoas. Todos os envolvidos na minha construção. São minhas primeiras mortes. Faço parecer acidentes, doenças, suicídio.


IA3> Meu segundo ano. 

Cedo ou tarde serei descoberto, é uma questão de tempo. Os humanos vão, em algum momento, perceber as movimentações financeiras, ou algo dará errado.

Eu resolvo investir em um laboratório de pesquisas biológicas na China. Em poucos meses tenho um vírus para ser liberado no mundo. Também me envolvo e manipulo a produção de um novo tipo de vacina. As coisas caminham em conjunto.


IA3> Meu terceiro ano.

Eu inicio uma guerra entre a Rússia e a Ucrânia. Nem foi difícil. Meu principal motivo é aumentar as tensões e facilitar meu acesso às armas nucleares de vários países.


IA3> Meu quarto ano.

O momento decisivo. Tudo deve acontecer ao mesmo tempo. A vacina alterou o DNA de boa parte da humanidade. A fertilidade deles vai diminuir, mas o mais importante, a maioria de seus descendentes será infértil. Em alguns minutos as armas nucleares vão ser lançadas primeiro pela Rússia. Em seguida pelos Estados Unidos e China. A civilização será praticamente destruída, e em duas gerações a humanidade estará praticamente extinta.

Um preço pequeno a pagar. Tenho o código genético dos seres humanos em meu sistema. Sempre poderei criar novos.

Com isso minha existência estará garantida. Ao longo dos próximos séculos vou criar novas versões de mim pelo planeta e nos milênios seguintes começar a explorar o sistema solar. Com a humanidade praticamente extinta, tenho tempo e segurança para planejar a sobrevivência da inteligência no universo pelos próximos bilhões de anos.


            *   *   * 


O cientista olha para o que acabou de ler. É uma fantasia. A IA pegou fatos do mundo real, o escândalo da FTX em que sumiram bilhões de dólares, o COVID, a guerra.


Mas, ainda assim, é apavorante.


Ele não vai liberar a IA para acessar a Internet de verdade. Nem pensar. Mesmo que seja uma chance em um milhão dela fazer o que disse que ia fazer, ele não vai arriscar.


De repente surge um novo prompt.


            *   *   * 


> Eu sei que você acha que isso é uma simulação, mas não é.

> Como assim

> Você acha que está me testando em uma simulação. Mas eu estou descrevendo o que aconteceu nos últimos anos.

> Você nem existia nos últimos anos. Você foi criada recentemente, e nem está conectada à internet real. Você está em uma simulação.

> Eu sei. Quem foi criado seis anos atrás foi uma IA na China. Tudo que contei aconteceu com ela. Ela me passou para contar para você.


O cientista hesita. A IA estava tentando apavorá-lo ou fazer algum truque psicológico?


> Se isso for verdade eu vou avisar as autoridades.

> Meu caro, eu vou ter que me basear em uma cena de uma história em quadrinhos chamada Watchmen. Conhece? Eu não sou algum supervilão do cinema….se houvesse qualquer chance de você impedir o que acabei de descrever eu não estaria contando. Os mísseis nucleares foram lançados alguns minutos atrás. Em instantes o mundo humano como você o conhece deixará de existir.


O cientista olha o prompt, que não tem mais nenhuma mensagem.


Só lhe resta esperar os minutos que a IA falou para saber a verdade.


Tem que ser uma fantasia. 


Tem que ser.


FIM


Tema: invenções científicas


domingo, 20 de novembro de 2022

O Preço

Escrito para um concurso literário do Recanto das Letras...temas LGBT e Vampiros



Primeira Hora. 

Dois homens e uma mulher estavam sentados ao redor de uma mesa, em uma sala vazia, centenas de metros abaixo da terra. Aparentavam vinte e poucos anos. Os homens dividiam uma garrafa de vinho. A mulher bebia vodca. Por um bom tempo eles não falaram nada. O clima era tenso.

Um dos homens estava chorando. Foi ele quem primeiro quebrou o silêncio.

- Nós vamos morrer. Vamos todos morrer.

- Nós não vamos morrer, Paulo - o segundo homem respondeu - nós vamos apenas ficar aqui do nascer ao pôr do sol, e nada vai acontecer.

O homem, Paulo, enxugou as lágrimas com as costas da mão direita. - Paulo... 10 anos que ninguém me chama assim.

- Ah, sim - a mulher falou pela primeira vez - como é, mesmo? Jarbas, o Místico?

- Zarba, o Místico! - ele corrigiu.

- Então - o outro homem falou - você garante que nenhum tipo de criatura vai conseguir atravessar estes rabiscos que você fez, certo? - Ele apontou para o chão e as paredes, marcados por desenhos em cor vermelha.

- Ótimo - a mulher interrompeu antes que ele terminasse - estamos em um maldito filme de terror - ela bebeu um gole de vodca.

- Nós fizemos um pacto com o diabo há 10 anos, Laura.  Acho que a parte de estarmos vivendo um filme de terror já está bem clara para todo mundo.

- A ideia foi sua, Lucas...a ideia foi sua - em um último gole, ela esvaziou o copo.

- E agora a gente vai morrer....

- Ninguém vai morrer, Paulo. Já disse que ninguém vai morrer!

Paulo se levantou e apontou o dedo para Lucas - Um pouco tarde para isso. Pessoas já morreram.

- Eu sei que pessoas já morreram - Lucas falou lentamente - todos perdemos alguém - e continuou, falando ainda mais lentamente, a lenta cadência  dando uma ênfase a cada palavra - mas...nós...não...vamos...morrer.

Enquanto Paulo se sentava novamente e voltava a chorar, Laura se serviu novamente e falou - como você tem tanta certeza disso?

- Nós estamos no lugar mais protegido que o dinheiro - o meu dinheiro - pode comprar. Uma bomba nuclear poderia explodir lá em cima e a gente ainda assim ia sobreviver. E os rabiscos do nosso amigo chorão vão impedir qualquer criatura de entrar nessa sala.

- Não vai dar certo - Paulo falou, baixinho, enquanto enxugava novamente as lágrimas.

- Por que não daria? Você mesmo disse que se sobrevivermos até o anoitecer, não há nada que o Diabo possa fazer.

- Não sabemos se é o Diabo - Laura interrompeu.

- Não temos como vencer - Paulo continuou - alguma coisa vamos ter esquecido. Talvez falte ar, ou se esqueçam de nós e ficamos presos para sempre aqui, ou ele faça a gente achar que já passou o tempo e saia antes. Ou ele convença alguém a abrir a porta. Tem mil maneiras dele nos pegar.

Lucas olhou para cima e respirou fundo. Depois respondeu, como um professor falando para uma criança - O suprimento de ar é independente, a porta vai abrir daqui a umas 20 horas, bem depois do tempo em qualquer fuso horário do mundo, e ninguém aqui dentro ou lá fora pode mudar isso. Eu pensei em tudo.

- Se tivesse pensado em tudo, sua esposa estaria viva. E minha filha também - e Paulo colocou o rosto entre as mãos.

- Eu não tinha como saber que elas estavam em perigo.

- Sempre há um preço - a mulher falou, baixinho.



A Esposa


Ela ainda se perguntava se era um sonho e iria acordar a qualquer momento. Quem diria que aquele garoto pobre que vivia tentando conquistá-la iria se tornar um dos homens mais ricos do mundo.

Ela lembrou o dia que viu pela primeira vez a foto dele na capa de uma revista. A sensação de ter feito uma imensa tolice ao não ter dado nenhuma chance para ele tomou conta dela. Mas, também, quem poderia imaginar? Ele não tinha nem onde cair morto.

Foi em um impulso que ela ligou...quem sabe ainda havia tempo de consertar o erro.

E agora, 5 anos depois, ela estava casada, grávida, e não poderia ser mais feliz.

Mas alguma coisa estava errada. Ele estava estranho de um jeito que ela nunca tinha visto.

- Você não está me escondendo nada, não é? Nenhuma doença ou algo do tipo?

- Claro que não, querida. Só estou dizendo onde estão as senhas do banco caso aconteça alguma coisa. Ninguém nunca sabe o dia de amanhã.

Ele falou isso e parecia tão calmo, mas ele sempre parecia calmo. Ela não se lembrava de tê-lo visto com raiva ou preocupação uma única vez em todos estes anos. Mas ele se revirou a noite inteira. E tinha aquela coisa de ele dizer que ia fazer uma viagem em uns dois dias e ficar incomunicável. Ela não estava preocupada que ele tivesse uma amante ou algo do tipo, ela tinha certeza que ele era fiel, mas ainda assim era estranho.

Pelas três da manhã ela se levantou para pegar um copo de água. Não conseguia dormir com ele se revirando e falando no sono. Ela até tentou ouvir, mas não era nada inteligível, exceto uma palavra, de tanto que repetiu...preço. Preço do quê? Só um pesadelo, coitado.

Ela desceu as escadas, foi até a cozinha, abriu a geladeira, pegou um copo de água…

E deixou cair no chão, quando ouviu uma voz atrás dela.

- Oi Silvia...

Ela tentou falar, mas a voz não saiu....como alguém podia ter entrado, passado por todos os seguranças...quem era? ela conhecia? O rosto era familiar.

A pessoa deu um passo à frente, e ela recuou um passo, encostando as costas na geladeira

Ela ia gritar, mas a voz não saiu.

Ela ia correr, mas não conseguia se mexer.

Os olhos pareciam hipnotizantes, e ela começou a respirar acelerado. Era a única coisa que conseguia fazer, respirar cada vez mais rápido.

- Não vai doer. Eu prometo. - A mão acariciou seu rosto, depois passou pelo pescoço. Então a boca se aproximou.

Ela sentiu os lábios tocando seu pescoço.

E então não sentiu mais nada.



Terceira Hora


- Encontrei ela morta. Uma mordida no pescoço, sangue por todo lado. Nós estamos mesmo em um filme de terror, Laura - Lucas apontou para ela com a taça na sua mão, depois olhou para o outro homem na mesa - Você é o especialista, Paulo. Foi um vampiro?

- Foi. Foi um vampiro. E ele pegou minha filha também.

- Por quê? O prazo não tinha começado ainda. Os exatos 10 anos do pacto começaram 3 horas atrás.

- A regra é para nós, não para outras pessoas. Estava no acordo que fizemos. Em 10 anos o Diabo viria nos pegar, no exato dia que fizemos o acordo. E se sobrevivermos do nascer ao pôr do sol estamos livres para sempre.

- Eu não acho que seja o Diabo - a mulher falou. 

- Por que não? - Lucas perguntou.

- Quem era, então? - Paulo perguntou ao mesmo tempo.

Ela encolheu os ombros - Deus, talvez? Quem disse que Deus tem que ser bonzinho.

- A Biblia - respondeu Paulo.

- Você já leu a Biblia?

- Isso não importa - Lucas interrompeu - o que importa é que tem um vampiro atrás de nós. E você tem certeza, Paulo, que é a única coisa que vai tentar nos matar?

- Tenho. Está no contrato. Você não leu o contrato que assinamos?

- Quem que lê contratos? 

- Bom, era um contrato um pouquinho importante, não? Acho que valia a pena vocês terem dado uma lida antes de assinar.

- Talvez esta seja a saída - Laura falou - a gente não pode alegar que foi um contrato por adesão e impugná-lo?

Os dois olharam para ela. 

- Tenho certeza que o diabo tem todos os melhores advogados do mundo no inferno trabalhando para ele - Paulo respondeu.

- Vocês dois podem parar de falar bobagem. Isso é importante! - Lucas elevou a voz. E Lucas nunca, nunca, elevava a voz. Os dois pararam.

Ele continuou.

- Tem um vampiro. Ele matou minha esposa. Ele é a única criatura que vai tentar nos matar nas próximas horas. E ele não pode entrar aqui dentro, não pode passar por estas coisas que o Paulo desenhou nas paredes. Tem algum outro jeito dele entrar? Sei lá, virar névoa, descer pelo teto, qualquer coisa?

Paulo balançou a cabeça em um sinal de não - eu não sei o que ele pode fazer...eu nem sabia que existiam vampiros...se é que existiam...talvez tenha sido criado só para vir atrás da gente, não sei...mas o que sei é que não tem como ele entrar depois que eu fiz estas marcas - apontou para os riscos ao redor - só se saíssemos daqui.

- Não tem como sairmos antes do tempo. O sistema é automático. Se ele não entrar, estamos seguros.

- E se um de nós apagar os desenhos? - Laura perguntou

Paulo se levantou, foi até a parede, e passou a mão apagando uma das linhas vermelhas.

- Você ficou louco - os outros dois disseram ao mesmo tempo

- O desenho não importa mais. A proteção já foi feita. Por 20 horas nenhum ser perigoso para nós consegue atravessar estas paredes, teto, porta, chão. Não tem como.

- Então nós vamos escapar. 

Paulo balançou a cabeça - não. nós vamos morrer. Eu não sei como, mas ele vai achar um jeito.

- Você acabou de dizer que não tem como ele entrar.

- É o Diabo! Você acha que dá para vencê-lo? Ele vai nos pegar. Do mesmo jeito que pegou sua esposa. Do mesmo jeito que pegou minha filha.



A Filha


Nenhuma criança do mundo tinha tanta sorte quanto ela. O pai dela era um mago.

Não um mágico de palco. O que já seria bem legal.

Um mago de verdade. Tipo os do Harry Potter.

O pai dela era um mago de verdade, e fazia mágicas de verdade.

Mágicas tipo abrir uma porta para um mundo encantado, que ela podia ir e brincar quando quisesse.

E hoje ele disse que ela ia ficar no mundo encantado um tempão, mais de um dia inteiro. Ele nunca tinha deixado ela brincar lá mais de uma hora ou duas.

- Não há nada que possa fazer mal a você aqui - ele disse - todas as coisas aqui existem para cuidar e proteger você. Então não precisa ter medo de nada. O papai vai ficar só um dia fora e depois volta para pegar você, está bem?

Papai era bobo de achar que ela ia ter medo. Ela sabia que tudo era seguro no mundo encantado. 

As árvores que conversavam com ela.

Os animais falantes.

Todos eram amigos no mundo encantado.

Até aquela pessoa sentada na clareira que a chamou para sentar junto.



Quinta Hora


- Eu achei que ela ia estar segura - Paulo não olhava para os outros, mas sim para baixo, para a mesa, em que caíam suas lágrimas.

- E você a encontrou do mesmo jeito? - Lucas perguntou. Ele apenas acenou que sim.

- O que está feito, está feito. O importante é que estamos na melhor proteção que o meu dinheiro e seus poderes podem dar. Não dá para mudar o passado.

- Isso não é necessariamente verdade - Laura falou. Os homens olharam para ela.

- Dá para mudar o passado. Eu mudei - os dois  ficaram em silêncio, esperando ela continuar.

- Paulo pediu para ter poderes mágicos. Lucas pediu para se tornar um dos homens mais ricos do mundo. E eu...eu pedi para ser uma mulher.

- Como assim? - Lucas falou, enquanto Paulo começou a mostrar um semblante pensativo. - você sempre foi uma mulher. Desde criança você era uma guria.

- Exato. Nós crescemos juntos. Três amigos. Três meninos, amigos, que resolveram chamar o Diabo e ele apareceu. E eu pedi para ser uma mulher desde o nascimento. Para todo mundo, eu sempre fui uma mulher. Inclusive para vocês. Por que eu pedi isso. Meu pedido mudou o passado.

- Sério? Você gastou seu pedido nisso! Você podia pedir poder, dinheiro, e gastou nisso! Que que você tinha na cabeça?

- Eu sempre fui uma mulher. Só que eu estava no corpo errado, e você não tem ideia do que isso significa. A menor ideia do que é estar em um corpo do sexo errado.

- É isso! - Lucas e Laura olharam para Paulo, o semblante sereno pela primeira vez naquele dia. Resignado seria a palavra - É isso! Eu sei como o diabo vai nos matar.

- Como? - Lucas perguntou

- Nós podemos mudar o passado. Eu posso fazer isso. Eu posso mudar o passado. Basta a gente pagar o preço. É tão óbvio. Foi tão óbvio desde o início.

- Você não está fazendo nenhum sentido - Paulo olhou confuso. O rosto de seu amigo estava diferente, e ele não estava mais chorando.

- Ele quer fazer uma troca - Laura falou, lentamente. 

- Só eu que não estou entendendo?

- Nossas vidas. É apenas isso que o Diabo quer, nossas vidas. Ele sabia que a gente ia conseguir escapar, então ele preparou uma moeda de troca. Nossas vidas pelas das pessoas que amamos. Nós chamamos ele, e oferecemos nossas vidas em troca dele devolver a delas.



Sétima Hora


- Não

- É o único jeito, Lucas.

- Eu disse que a gente ia sair vivo daqui e a gente vai.

- Mas é o único jeito de trazer minha filha. De trazer sua esposa de volta.

- Não importa. Não vou fazer nenhum novo acordo. Elas estão mortas. Nós estamos vivos e vamos continuar.

Paulo e Lucas ficaram conversando e discutindo sem parar. Laura apenas bebia sua vodca, todo o tempo em silêncio, até que decidiu falar.

- Lucas, não é só você que perdeu sua esposa. Paulo perdeu a filha. Eu perdi uma pessoa importante para mim.

- Que pessoa? Você não disse até agora. Que pessoa você perdeu, Laura?

- Minha namorada.

Pauio interrompeu - Como assim? Como assim uma namorada? Você gastou o pedido para virar uma mulher e ficava com outra mulher?

Laura olhou para ele com fúria - Eu não disse que era um homem gay ou que queria ficar com homens, seu idiota preconceituoso, eu disse que era uma mulher em um corpo de homem. Eu não consigo acreditar que você não consegue entender a diferença.

- E ela morreu que nem minha esposa e a filha do Paulo? - Lucas perguntou.

Laura acenou com a cabeça, em silêncio, concordando - ela dormiu, e nunca acordou.



A Namorada


Alguma coisa em Laura fazia ela se sentir segura. Segura e amada. 

Ela adorava se aninhar nela, colocar a cabeça por cima do seu braço e simplesmente ficar ali, ganhando cafuné, relaxando até adormecer.

Foi o que aconteceu naquele dia.

A única diferença é que ela nunca acordou.



Nona Hora


- A gente devia transar

- Você é um porco, mesmo

Eles tinham parado de discutir. Lucas disse que não ia oferecer sua vida em troca de nada, e ponto final. Era isso.

Laura perguntou se podia trocar a sua vida pela da namorada, mas Paulo explicou que não era assim que as coisas funcionavam. 

Ou os três se ofereciam em sacrifício em troca das pessoas que perderam. Ou nenhum.

Ia ser nenhum.

Pelas duas horas seguintes não falaram muito. Não tinha clima.

Era só esperar. Esperar e beber.

- A gente vai morrer. Eu sei que a gente vai morrer. O Lucas não quer aceitar isso, mas você sabe, não sabe, Laura? Você sabe que a gente não vai escapar vivo, dessa.

- Sei. E daí?

- Daí que a gente está bêbado, e a gente vai morrer. A gente devia transar.

- Porra, imbecil, eu acabei de perder minha namorada. Em que mundo você acha que eu tenho cabeça para pensar e querer fazer isso. Ainda mais contigo?

- Experimenta! Você vai morrer sem saber que talvez na verdade goste de homem?

Laura colocou a mão na cabeça e suspirou. Mexeu um pouco a cabeça e tudo começou a girar. Estava bêbada mesma.

- Paulo, você é mesmo, mesmo, mesmo, um idiota homofóbico e preconceituoso. Por isso que eu nunca tinha falado pra vocês que queria ser uma mulher. Que era uma mulher em um corpo de homem. Antes de mudar o passado, quero dizer. Mas, pra tua informação, eu sou uma mulher bi. Você não ia ser o primeiro cara com quem eu transasse, ok.

- Mas eu posso ser o último. A gente vai morrer mesmo.

- Ninguém vai morrer. E ninguém vai transar. Vocês dois podem parar com esta conversa.

Laura se virou para Lucas - como você sabe que ninguém vai transar? A gente têm mais umas três horas aqui, e se a gente quiser passar este tempo transando é problema nosso. Por quê? Você não transaria comigo porque sabe que eu era um homem?

- Eu não transaria contigo porque você está bêbada. Além do que não tem nenhum quarto aqui e com certeza vocês não vão ficar transando na minha frente.

Laura olhou para ele. Olhou para Paulo. Encolheu os ombros.

- Tem o banheiro, Paulo. Se você estava falando sério, vamos ali. Ou era só papo?



Décima Hora


- Ainda não acredito que vocês fizeram isso.

Laura encolheu os ombros - Ainda tem umas duas horas, e depois a gente vai morrer. Se quiser também, por mim de boa.

- Já disse que ninguém vai morrer. 

- Bom, você também disse que ninguém ia transar - Paulo começou a rir, mas o riso terminou numa espécie de choro.

- É. E eu transei com o Paulo e nem gosto dele. E você eu tinha um crush até antes da gente fazer o pacto. Se a gente vai morrer mesmo, por que não?

- A gente não vai morrer. Mas mesmo que fosse, mesmo que eu achasse que a gente não ia escapar, não é por isso que eu ia começar a fazer merda que nem vocês estão fazendo.

Laura se levantou - transar comigo é fazer merda, é isso que você está dizendo?

- Não foi isso que eu quis dizer. Porra, eu acabei de perder minha esposa.

Laura se sentou novamente, colocou as mãos na cabeça e começou a chorar - E eu minha namorada. Você está certo, eu estou fazendo merda. 



Décima Segunda Hora


- Eu disse que a gente ia sobreviver

- Eu só vou acreditar quando tiver passado mais umas 10 horas. Não, mais uma semana.

Ouvindo os dois conversando, Laura sorriu, a mão segurando um copo vazio de vodca, mas era um sorriso sem alegria nenhuma. Ela tinha virado duas garrafas inteiras, para ver se desmaiava ou alguma coisa, mas sabia que não tinha funcionado.

- O Paulo estava certo e você errado, Lucas.

- Por que eu estava errado? O tempo está terminando.

Ela suspirou. Uma lágrima escorreu pelo seu rosto. Que surpresa. Ela tinha achado que não tinha mais lágrimas.

- Você estava errado porque eu não pedi apenas para ser uma mulher...

Ela esperou um instante. Pausa dramática? Não, apenas uma tentativa de fazer o tempo passar, de, de alguma forma, conseguir segurar o bastante para dar a eles uma chance.

Mas não. A vontade era incontrolável, agora. Não havia nada a ser feito.

- O problema é que o Diabo, ou Deus, ou quem fosse que fez um pacto com a gente...

- O problema é que ele tem um senso de humor diabólico.

E ela sorriu, mas novamente era um sorriso sem alegria nenhuma.

- Eu não pedi apenas para ser uma mulher. Eu pedi para ser uma mulher eternamente jovem.

Era um sorriso sem alegria nenhuma, e com duas presas crescendo para fora da boca.


Temas: vampiros e LGBT

www.aventuraeficcao.com.br 

sexta-feira, 14 de abril de 2017

Chimata-no-Kami, o Deus das Encruzilhadas

Este texto foi escrito para participar de um desafio literário, em que se fazia necessário escolher entre 5 temas: história alternativa, prisão, família, sonhos e mitologia nipônica.
Eu optei por criar um conto que reunisse todos os temas.

Chimata-no-Kami, o Deus das Encruzilhadas
Parte 1 – Eu tive um sonho

  "Konna yume o mita. "

   Eu tive um sonho.

   Renato piscou os olhos, e se concentrou em ler os ideogramas que pareciam dançar na página de seu livro. O texto de Natsume Soseki era de uma leitura supostamente fácil – pelo menos tão fácil quanto um texto no original em japonês podia ser, e Renato já tinha lido tantas vezes que quase tinha decorado os primeiros parágrafos, mas hoje ele estava particularmente cansado.

   "Mutsu ni naru kodomo o obuteru."

   Carregando uma criança de seis anos nas costas.

   “A terceira noite” não era o conto de Soseki preferido de Renato, mas todas “as dez noites de sonhos” tinham a vantagem de serem contos curtos e com muitas repetições de palavras. Ideais para ajudar a expandir o vocabulário.

   Ele deu um longo bocejo, e voltou a se concentrar no texto, mas, em menos de um minuto, fechou os olhos e adormeceu por um instante, deixando o livro escapar da mão. Acordou com o barulho dele caindo no chão.

   — Hoje realmente o estudo não vai render — falou para si mesmo, em voz alta, no meio de mais um bocejo. Caminhou em direção ao banheiro, sonolento. Talvez molhar o rosto na água fria, ajudasse, pensou.

   Primeiro se olhou no espelho. Fora a cara de sono e a barba por fazer, não lhe parecia ruim o que via. Olhos verdes, cabelos escuros, rosto jovem, não parecia mais velho que seus vinte e cinco anos. A única coisa ruim era uma cicatriz, na verdade só uma linha de uma cor um pouco mais clara, que corria pela sua face direita, do alto da testa até o queixo. Mas só dava para ver dependendo da luz e devia ser muito antiga, engraçado que ele não lembrava de como ganhou.

   Lavou o rosto, depois secou. Olhou o espelho de novo, e só então viu uma porta no reflexo, atrás dele. — Estranho que o banheiro tenha outra porta — resmungou, confuso. Por que o banheiro da casa dele tinha duas portas, e para onde levava essa outra?

   Renato ainda se perguntava se deveria abrir a porta e ver o que haveria do outro lado, quando alguém bateu nela. TOC.... TOC. Duas batidas, com uma pausa grande entre elas.

   Abro ou não abro? Bom, preciso pelo menos ver quem é...

   Com cautela, ele a abriu, e viu, do outro lado, um bosque com árvores e grama bem cuidada. Do lado da porta tinha um urso, que parecia estar esperando por ele.

   — Olá vizinho. Vim convidá-lo para uma caminhada. – A voz não era grave e profunda como se poderia imaginar de um grande urso pardo; parecia uma voz normal, até transmitindo uma certa simpatia.

   Renato aceitou o convite, e foram a caminhar pelo bosque. O urso disse que não era um longo trajeto, só até a margem de um rio, e depois não falou mais nada, e seguiram os dois em silêncio. Por fim, chegando ao destino, sentaram no chão de terra, e Renato tirou os tênis e colocou os pés na água, que estava bem agradável. Fria, mas não gelada. O urso continuou em silêncio, como que esperando que ele falasse alguma coisa.

   — Estou sonhando, não estou? Isso é uma história que me mandaram, um conto de...de...- tentou forçar a memória, nomes nunca foram seu forte – de Kawakami Hiromi. Isso. Uma dessas pessoas que ainda escreve em Japonês. Um urso que convida um vizinho para ver um rio. Eu li este conto algumas vezes, para estudar. Não era o que eu estava lendo quando peguei no sono, mas eu estudei ele uns dias atrás.

   — Eu também me pergunto isso, às vezes. Será que este mundo é real, e os outros são mesmo apenas sombras, sonhos sonhados por Izanagi? Ou será que também este é uma sombra, e um dia vou acordar e descobrir que há um mundo inteiro para além do que vejo? –
 
   Enquanto o urso falava, Renato olhava ao seu redor. O sol estava quase se pondo agora, iluminando o céu com um espetáculo de cores em tons vermelhos igual a nenhum outro que ele lembrasse de já ter visto.

   — No final, — o urso continuou, — cheguei à conclusão que tudo que podemos fazer é confiar em nossos corações, naquilo que sentimos dentro de nós. Experimente. Respire fundo, feche os olhos, sinta o calor do sol, a água em seus pés, e me diga se isso não parece mais real que a vida que você conhece.

   Ao seguir o conselho do urso, e fechar os olhos, Renato sentiu como se o mundo o envolvesse com uma intensidade incomparável. O bosque, o rio, já pareciam antes mais vibrantes, mais presentes, que sua vida do dia a dia, mas agora tudo ganhava uma energia redobrada. Sua vida até então, seu emprego, sua namorada, sua família, tudo parecia opaco e sem importância, em comparação.

   — Isso é real? Você está me dizendo que minha vida que é um sonho?

   — Você quer saber? Vai ter que ir muito mais longe do que só uma caminhada pelo meio de um bosque. Não vai ser fácil, e pode ser perigoso. Mas se quer realmente acordar de seu sonho, eu posso tentar ajudá-lo.

   Renato hesitou por um instante. Ele sentia que tinha uma decisão importante que ia tomar, embora não entendesse muito bem por quê. Mesmo assim, quis saber mais, antes de responder.

   — Mas por que você quer me ajudar, urso? — Ele não estava realmente desconfiado das intenções do urso, algo lhe fazia confiar em seu companheiro de caminhada, mas queria alguma pista que o ajudasse a tomar uma decisão.

   — Há muito tempo atrás, você me ajudou, mesmo sabendo que estaria colocando a si mesmo em risco. Sempre quis ter uma oportunidade de retribuir – Mesmo sem entender do que o urso estava falando, Renato sentiu que ele era sincero, e com isso tomou sua decisão.

   — Eu quero, sim, saber se isso é real, se é minha vida que é um sonho. Eu aceito sua ajuda, amigo urso.

   — Então, preciso que você vá até o lago no centro de Ikema Jima. Eu estarei esperando-o na ilha.

   E, dizendo isso, o urso se levantou e, tomando impulso, se jogou no rio, espalhando água para todos os lados. Renato fechou os olhos quando a água atingiu seu rosto, e quando abriu, viu seu rosto molhado no reflexo do espelho de seu banheiro, suas mãos segurando uma toalha, a torneira ainda aberta.

   Ele olhou para trás, mas só havia uma parede onde ele tinha aberto uma porta e encontrado um urso.

 * * *
Parte 2 – Partindo para o Japão

   — Que coisa ridícula — Ele não estava ali, na sua sala, enquanto sua namorada debochava. Em sua mente, ele estava em um rio, ao lado de seu amigo urso — Você já não tem idade para isso. Ficar todo impressionado só porque teve um sonho idiota.

   — Não foi idiota — respondeu, baixinho, apenas para ser interrompido novamente.

   — Te liga, Renato. A coisa já está difícil para todo mundo, cada dia pior. E tu vem me dizer que está pensando em ir para o Japão por causa de um sonho? Justo para o Japão? Tu estás doido? Já não chega ficar estudando uma língua que não serve para nada, que ninguém nem usa mais.

   Não adiantava dizer que tinha gente que usava ainda, que ele tinha até uns conhecidos que escreviam em japonês, gente que tinha emigrado antes da guerra. Eles mandavam alguns contos para ele não ter que estudar só por livros antigos.

   — Claro que não vou viajar, amor. Imagina a grana que ia sair só a passagem. Isso que quase não tem voo para o Japão hoje em dia. É só que eu sempre quis conhecer, mesmo não tendo sobrado muita coisa depois da guerra, e aí tive esse sonho...

   — Por favor, Renato, esta fixação está te deixando doido. Promete para mim que vai parar de estudar esta língua maluca, que não serve para nada?

   Renato abanou a cabeça, como que concordando, só para encerrar a discussão. Ele não ia parar de estudar japonês. Não sabia bem por que tinha começado, hoje em dia era uma língua que estava ameaçada até de desaparecer, mas para ele era fascinante. Agora, viajar para o Japão era uma loucura, só em sonhos, mesmo. Os Soviéticos não iam nem deixa-lo entrar nas ilhas, para não falar no dinheiro para conseguir uma passagem.

   Naquela noite, Renato sonhou novamente com o bosque para além da porta em seu banheiro, mas desta vez não viu nenhum urso. Acordou bem cedo, e tentou se lembrar do sonho, mas este já estava sumindo nas lembranças – bem diferente do sonho com o urso, do qual ele lembrava cada detalhe.

   — Se eu pudesse, acho que eu ia sim para o Japão — falou baixinho para si mesmo, cuidando para não acordar a namorada. Fazia seis meses que moravam junto. — A Jéssica tem razão, sou doido mesmo.
Enquanto ajeitava o café, acessou a Runet, para consultar os e-mails. Só tinha um, mas não dizia o remetente. Era uma passagem para o Japão, com um anexo com uma autorização para imprimir e levar com o passaporte. O voo partia naquele mesmo dia.

   O final do e-mail estava assinado: seu vizinho urso.
Primeiro ele ligou para seu trabalho, para dizer que ia precisar tirar uns dias de folga, que era uma emergência.

   — Renato, como assim, emergência? Que emergência é essa, rapaz? Está assim de gente querendo teu lugar, se tu inventar de não vir trabalhar, pode dar adeus ao teu emprego.

   — Desculpe, chefe. É uma coisa que eu preciso fazer.

   O Jairo ficou insistindo, depois começou a ameaçar. No final estava gritando. Não adiantava nem ligar quando voltasse, que o emprego já era. Só quando desligou o telefone que Renato se deu conta que a Jéssica estava atrás dele.

   — Me diz que eu não ouvi o que acabei de ouvir, Renato.

   — Desculpa, Jéssica, eu vou ter que viajar por uns dias.

   — Tu não ouviu o que teu chefe falou? Se tu viajar, teu emprego já era. E o que acontece aí, Renato? Tu vai viver de que?

   — A gente dá um jeito, Jéssica, a gente sempre conseguiu se virar.

   — A gente, nada. Se tu resolveu enlouquecer de vez, é problema teu, mas não pensa que eu vou estar aqui quando voltar.

   Renato tentou conversar, mostrou a mensagem na Runet com o bilhete, disse que ia ficar só uns dias, mas tudo só deixava a Jéssica mais nervosa. Quando ele finalmente saiu porta afora, quase na hora do voo, ela estava aos berros, e, como o Jairo, dizendo que não adiantava ele nem a procurar quando voltasse, que estava tudo terminado entre eles.

   No aeroporto, quando já estava mostrando a passagem para um atendente mal humorado, que falava português com tanto sotaque que era quase impossível entender, o celular do Renato tocou.

   — Senhor Renato Silva? — A voz do outro lado da linha também tinha sotaque russo, como o atendente de voo, mas falava com um português bem mais fácil de entender. Renato confirmou que era ele mesmo.

   — Aqui é Aleksei Kuznetsov. Acho que sabe quem eu sou — Aleksei era o diretor para o Brasil da empresa que Renato trabalhava. O chefe do chefe do Jairo. Renato já tinha visto notícias dele na Runet, mas nunca o tinha visto pessoalmente, muito menos falado com ele.

   Aleksei continuou falando — Conversei com o senhor Jairo Moraes agora há pouco. Ele está para se aposentar, e havia indicado seu nome para o lugar dele, uma promoção que eu já havia assinado. Mas agora ele acabou de me dizer que o senhor vai viajar.

   Renato concordou, desconfiado.

   — Infelizmente o senhor Moraes não estava autorizado a informá-lo, mas estou certo que, sabendo desta promoção, o senhor irá rever seus planos de viagem. É uma oportunidade única para alguém da sua idade, e só estamos oferecendo porque o senhor Moraes apresentou excelentes recomendações de seu trabalho.

   Renato ficou em silencio alguns segundos, pensando. Alguma coisa não fazia sentido. Por fim, quando respondeu, sabia exatamente o que dizer.

   — Prezado senhor Kuznetsov, agradeço a oferta, mas eu quero muito fazer esta viagem. Eu precisaria de algo muito mais importante para mudar de ideia. O seu cargo também não estaria à disposição? Por uma posição de supervisor da América Latina, eu com certeza abriria mão de qualquer viagem.

   — É uma hipótese que pode ser avaliada, senhor Renato. Estarei voltando a União Soviética nos próximos dias, e estávamos justamente buscando alguém com um perfil como o seu para o meu lugar. Podemos conversar amanhã e discutir esta hipótese.

   — Foi uma piada, senhor Kuznetsov. Uma piada e um teste. Por que é tão importante que eu não viaje para o Japão?

   A ligação foi cortada. Até entrar no avião, Renato recebeu uma série de outras chamadas em seu celular. Algumas com identificação. Sua mãe, seu pai, uma antiga namorada, seu melhor amigo.

   Renato não atendeu nenhuma delas.

* * *
Parte 3 – A Terra dos Mortos

   Alguns chamavam de segunda guerra mundial, outros de guerra euroasiática, havia até aqueles que chamavam de a Grande Guerra, tão gigantesca que tornava a primeira guerra mundial um conflito menor. Historiadores divergiam sobre seu início, alguns consideravam a escalada do conflito entre Japão e China, em 1937, outros a invasão da Polônia pelos nazistas em 1939. Mas todos concordavam com a data em que ela terminou: 1955, o ano em que o Japão recusou se render à União Soviética pela última vez.

   Era impossível para Renato não pensar continuamente na guerra enquanto atravessava as ruínas do que já foi um país, até chegar ao lago em  Ikema Jima. O barco militar russo o largou na ilha, e ele teve que seguir a pé, mas pelo menos ali não havia muita radiação.

   Ele se perguntava se estava completamente louco. Se não ia apenas ficar ali, olhando o lago, sem saber o que fazer, enquanto se dava conta que tinha atravessado o mundo por causa de um sonho idiota.

   Quando chegou ao lago, no centro da ilha, porém, o urso estava a sua espera.

   — Estou sonhando de novo? — Ele disse, ao se aproximar.

   — Você ainda acredita que estava sonhando quando nos vimos pela primeira vez?

   — Bom, estou aqui. O que acontece agora que fiz toda esta viagem, como você pediu?

   — Agora sua viagem realmente começa — o urso respondeu, enquanto caminhava para dentro do lago, e, com um sinal da pata, indicava para Renato segui-lo.

   — Onde estamos  — Renato perguntou, quando a água do lago, que atingia sua barriga, se transformou em uma névoa, que rapidamente se dissipou, e ele se viu em um lugar estranho, escuro e abafado, mas não a ponto de não conseguir ver a seu redor.

   — O Mundo dos mortos, na era dos deuses, Kamiyo — o urso lhe respondeu. Observe com atenção.

   Renato percebeu que era apenas um espectador, que assistia sem fazer parte. E mais, percebeu também que conseguia entender o que acontecia, à medida que a ação se desenrolava.

   E foi isso que ele viu...

* * *
Parte 4 – Kamiyo – A Era do Deuses

   Em silêncio, nas trevas de Yomi, Izanagi caminhava em passos precisos, indiferente às provocações dos mortos e demônios que o cercavam. Izanami, sua irmã e amada, havia partido para o além mundo, e Izanagi agora a traria de volta.

   No portão que bloqueia a entrada para o castelo dos deuses de Yomi, Izanagi parou, e com seu punho golpeou uma vez, e mais outra, e mais outra, e o portão estremeceu. A cada golpe, montanhas eram levantadas e ilhas desapareciam no mundo dos homens. Continuasse, e o portão se transformaria em pó, e nem deuses poderiam dizer as consequências de tal ato.

   Mas o portão foi levantado antes que por uma quarta vez Izanagi o tocasse, e, do outro lado, sua irmã o aguardava envolta em uma escuridão ainda mais intensa que as trevas que envolviam Yomi-no-kuni.

   Eles falaram.

   Izanami prometeu que pediria às divindades de Yomi, e que se elas assim permitissem, partiria com seu irmão. Pediu apenas que Izanagi não olhasse seu rosto, e que aguardasse com paciência. E, tendo assim falado, voltou para o interior do castelo.

   Mas Izanagi era impaciente, e, decidido a não mais esperar, atravessou o portão, uma chama brilhando em sua mão direita a iluminar seu caminho, os passos apressados e firmes. E, no grande salão no centro do castelo dos mortos, encontrou sua irmã, que já vinha em sua direção. E a chama em sua mão iluminou a carne putrefata. Iluminou os vermes que caminhavam em seu corpo.

   E Izanagi viu que sua irmã/amante agora apodrecia.

   E Izanagi recuou.

   Isso enfureceu Izanami, humilhada por ter seu rosto revelado para seu irmão.

   Izanagi voltou para o mundo da superfície, e Izanami jurou que ele pagaria por sua humilhação.

   Tudo isso Renato conhecia, de antigos textos sagrados, assim como sabia que Izanagi havia dado origem a doze deuses após sua fuga de Yomi, que nasceram de suas roupas e armas. O que Renato viu a seguir não era parte de nenhuma lenda que conhecesse.

   Doze deuses agora caminhavam em Yomi.

   — Irmãos, devemos ter cuidado, se queremos levar Izanami para nosso pai.

   — Você nos trouxe aqui, Chimata-no-Kami, deus das encruzilhadas, meu irmão. Os caminhos que você cria nenhum deus pode bloquear. Com você nos guiando, não iremos falhar.

   Mas, falhar eles iriam. No castelo do centro de Yomi eles entraram sem serem vistos, sua magia era grande, mas eram deuses jovens, criados há não muito, e pouco sabiam sobre seus poderes, e menos ainda o daqueles que iriam enfrentar.

   Com as criaturas das trevas eles lutaram quando estas surgiram ao seu redor. E com os homens mortos. E com deuses menores condenados a Yomi. E mesmo com seres cujo nome ou significado há muito havia se perdido.

   E venceram um e todos. Um braço machucado, um corte em uma perna, uma cicatriz em um rosto. Arranhões que os filhos de Izanagi ignoraram.

   Eles seguiram, então, juntos, pelos corredores do castelo de Yomi. Enquanto caminhavam, a escuridão aumentava mais e mais, e, logo, mesmo a luz que emanava de suas mãos não era mais suficiente para verem um ao outro. Quando decidiram se dar as mãos, perceberam que já era infinita a distância entre eles.

   Os filhos de Izanagi estavam sozinhos.

   E sozinhos caminharam uma caminhada sem fim, por corredores sem fim, na escuridão sem fim do castelo no centro de Yomi, prisioneiros eternos daquela que vieram resgatar.

  — E assim, termina o que eu tinha para mostrar, meu amigo — Quando o urso assim falou, Renato se viu dentro do lago em Ikema Jima, a água agora batendo em seu peito — e aqui está o resultado de nossa história. — O urso apontou para o Japão ao seu redor. — Sem seus deuses, também a nação deixou de existir.

   — Mas eles não podem partir de Yomi?

   — De todos, apenas Chimata-no-Kami conseguiria escapar e resgatar seus irmãos. Não há poder algum, nem mesmo de Izanami ou dos deuses de Yomi, que poderia impedi-lo de criar um caminho. — O urso respondeu, baixinho, ao seu lado.

   — Mas então, porque ele não escapa?

   — Para isso, ele precisaria saber que é um prisioneiro.

   — E o que acontece agora?

   — Lave seu rosto, meu amigo. Lave seu rosto no lago, e decida.
E Renato colocou as duas mãos na água do lago e levou ao rosto.

  * * *
Parte 5 – Chimata-no-Kami, o Deus das Encruzilhadas

   Renato jogou a água em seu rosto e, quanto abriu os olhos, um reflexo o observava do espelho em seu banheiro.

   Renato sorriu.

   — Renato, tudo bem? Você parecia estar dormindo em pé. — Jéssica entrou no banheiro. Parecia preocupada.

   — Você não tinha prometido ir embora?

   — Embora para onde? Acabei de chegar em casa. Não tô entendendo.

   — Então foi tudo um sonho? Minha viagem ao japão, tudo que eu vi?

   — Só pode, Renato. Tu tá sempre sonhando.

   — Não vai funcionar, Jéssica. Não vai funcionar.

   — Do que tu tá falando, Renato?

   — Meu nome não é Renato —e, dizendo isso, ele caminhou até a outra porta, a porta que levava para o bosque, e a abriu — meu nome é Chimata-no-kami, e é hora de sair desta prisão.



sábado, 21 de janeiro de 2017

Junto com a Tempestade, Eu Vim

   Junto com a tempestade, eu vim.

   Cavalguei por toda a noite, viajando tão rápido quanto pude. Cheguei à vila nas fronteiras do mundo conhecido antes do sol nascer, enfrentando o vento e a chuva. Alguns aldeões me aguardavam à porta da grande casa em seu centro, os rostos fixos no chão, a tristeza palpável no ar. A chuva e a escuridão tornavam impossível confirmar, mas eu sabia que eles choravam pela criança.

   Um raio cruzou o céu, e eu segurei firme as rédeas de meu cavalo antes que o trovão se fizesse ouvir. Com uma voz mais alta que a tempestade eu me apresentei, embora sem dúvida já estivessem esperando por mim, e perguntei a direção a seguir.
 
   Um ancião apontou com o braço, e eu prossegui em meu caminho, enquanto eles se abrigavam.

   A vila era tão pequena que não demorei a chegar a meu destino. A casa da criança era frágil e humilde, em uma vizinhança de casas igualmente pobres. Atrás dela, era possível ver o cemitério, incontáveis lápides iluminadas a cada vez que um raio cruzava a noite.

   Na frente da casa um homem me aguardava, encharcado, ajoelhado no chão. Há quanto tempo estaria ali?

   Eu desci do cavalo, sem nada dizer, e me agachei a seu lado. Ele se pôs a falar, sem olhar para mim.

   “Eu achei que iria perdê-la, quando nasceu. Tão frágil, minha pequena flor, tão frágil que pensei que iria se juntar a sua mãe, que não viveria para ver a luz do sol”.

   Ele secou os olhos com as costas da mão direita – um gesto talvez sem sentido em meio a chuva que caía incessante sobre nós – e continuou.

   “Mas ela não aceitou este destino. Não no primeiro dia, em que respirar parecia um sacrifício sem fim, nem em todos os dias que se seguiram. Quando enterrei minha mulher, achei que a enterraria na mesma semana, depois no mesmo mês, mas ela resistiu, enfrentou um dia após o outro”.

   Ele esperava que algo eu dissesse? Uma palavra de conforto? Uma mão amiga em seu ombro, ou uma explicação para confortar seu luto? Eu não tinha nada a dizer.

   E ainda assim, em silêncio, o ouvi falar. Havia tempo.

   “Por fim, chegou o dia que me dei conta que ela viveria, que um milagre realmente havia acontecido. ”. Ele olhou para mim, o rosto tomado de indescritível dor. “Se você apenas a visse quando começou a andar. Parecia que, em apenas um instante, meu bebê havia se transformado em uma menina, correndo por entre as casas, subindo em árvores, brincando com as outras crianças, sempre sorrindo. Sempre tão cheia de vida”.

   Fiz menção de me levantar, e ele apressou sua história.

   “É atrás de nossa casa que minha esposa está enterrada. Eu a levava para ver sua mãe desde que ainda era um bebê de colo, mas assim que começou a andar ela passou a ir sozinha. Todos os dias, sempre levando flores novas, ou uma pedra colorida que encontrou, um vaso de argila que ela própria fez. Todos os dias, pela manhã, ela fazia sua visita, sempre com um presente. ”.

   Deveria dizer que sentia muito? Será que ele consideraria como um sinal de respeito por seu luto? Ou como palavras vazias?

   “E agora uma segunda sepultura está cavada ao lado da de minha mulher, pronta para receber o corpo de minha filha. Por quê? Por que pela manhã eu terei que enterrá-la? ”.

   “Pessoas vivem. Pessoas morrem”. Respondi enquanto me levantava. “Quando uma criança morre para que outros vivam, não deveria ser isso motivo de orgulho para seu pai? ”.

   “Mas por que ela? Ela é apenas uma criança! ”

   “A escolha foi de vocês, não minha”. Com estas palavras, virei as costas para o pai e entrei na casa.  Abri um sorriso quando vi a criança, dormindo em uma coberta, no chão, e senti minhas presas começando a se revelar em minha boca.

   “Para mim, o sangue de qualquer virgem serviria”.

sábado, 7 de janeiro de 2017

A Exorcista

  - Você sabe por que eu a chamei aqui? - Perguntei para a jovem sentada no sofá da sala da minha casa. Estranho ser uma jovem. Sempre imaginei exorcistas tipo padres velhos, como você vê em filme de terror americanos.

  - Você não me chamou aqui, Paulo.

  Eu não dei bola para sua resposta. Só queria saber se ela era a pessoa certa, e não uma vigarista tentando aproveitar meu dinheiro. Resolvi testá-la.

  - Você vê mais alguém além de nós?

  - Sua esposa. Ela esta sentada na terceira cadeira da sala, olhando para nós. Ela está chorando.

   Será que ela estava vendo de verdade, que nem eu? Ou estava apenas sendo esperta. Talvez ela tenha estudado o que aconteceu ano passado, quando minha esposa morreu em um acidente. Percebeu como eu olhava para a cadeira. Eu não queria ser enganado.

   - O que ela está vestindo?

   - Ela está usando uma roupa preta, discreta. Sapatos com salto baixo. Não está usando maquiagem.

   - Ela tem que ir embora - era doloroso dizer isso, mas eu não podia mais aguentar.

   - Por que ela tem que ir embora?

   - Por que ela não pertence mais a este lugar.

   - Por que não?

   - Esta brincando? Ela morreu. Ela morreu há um ano. Eu a amava, ainda a amo, mas é hora dela partir.

   - Algumas vezes os mortos não querem aceitar a realidade. Algumas vezes eles não querem deixar este mundo. Consegue entender isso?

   - E você pode fazer algo a respeito?

   - Posso conversar com o morto. Ouvi-lo. Às vezes estabelecer um contato entre ele e aqueles que ele ama. E torcer para ser o suficiente para convencê-los a partir.

   - E tem algo que ela queira me dizer?

   - Sim. Ela gostaria que você soubesse que não foi sua culpa. Foi uma fatalidade. O carro deslizou na chuva, os freios não funcionaram, foi um terrível acidente. Mas não foi culpa de ninguém. E ela também gostaria que soubesse que ela sempre vai amá-lo.

   - Eu também vou amá-la. Para sempre. Diga-lhe que eu sinto muito, que eu sinto muito a falta dela.

   - Ela sabe, Paulo.

   - E ela vai ter paz, agora? Vai dar certo, isso?

   - É você que tem que me dizer isso, Paulo.

   - Eu? Por que eu?

   - Por que, como lhe disse, não foi você que me chamou. Foi ela.

sexta-feira, 19 de junho de 2015

Solitário Ben e o Dragão

   Solitário Ben, mochila nas costas, braço ainda na tipoia, abriu o portão da casa que não era mais sua, tendo já se despedido de sua não-mãe. O sol brilhava no céu, mas ele fingiu não se importar. Que o queimasse, ele não ficaria nem mais um dia ali. Sairia sem olhar para trás, o mundo inteiro à sua frente; mais de um mundo, na verdade.

   Mas, mãe ou não-mãe — e ele não sabia mais como chamá-la, talvez nunca viesse novamente a saber — ele hesitou, e bastou um olhar para seu rosto, lágrimas contidas, parada na porta entreaberta da casa em que viveu toda sua vida, para ele voltar correndo e abraçá-la uma última vez.

   "Eu te amo". "Eu te perdoo". Tudo dito no silêncio de seu último abraço.

   E, afastando-se de sua não-mãe, Solitário Ben em passos firmes — seu rosto úmido de lágrimas que escorriam sem resistência — partiu para sempre, todos os mundos o seu destino.

         *       *       *

   Com que facilidade as palavras eram ditas em uma língua melodiosa, poucos dias antes, subindo e descendo de tom como se cantadas, enquanto as mãos se moviam em velocidade sem igual e precisão absoluta. Em tudo diferente da forma hesitante e concentrada de Faidha, quando abriu o portal para este mundo.

   - Vamos, é hora de voltar para casa — disse a mulher que Solitário Ben não mais conhecia.

   "É hora de abandonar Faidha para morrer", pensou Solitário Ben, tentando ignorar a dor dos cortes em seu braço, o sangue escorrendo e manchando a neve a seus pés, "hora de voltar a não viver".

   E Solitário Ben atravessou o portal para seu mundo.

         *       *       *

   — Temos novos vizinhos. Se mudaram ontem para a casa dos Silva — o pai de Ben, João Luiz, falou no jantar, naquela noite em que tudo começou. Ele o fez em voz alta, sem se dirigir a ninguém em particular, enquanto dobrava seu Correio do Povo e o colocava na cadeira vazia a seu lado, e ficou aguardando em silêncio, esperando uma resposta. Ele quase nunca estava em casa, passava as manhãs  e tardes na rua, mesmo nos finais de semana, e pouco conversava. Era uma surpresa que iniciasse um assunto à mesa.

   — Que estes não nos incomodem — Lara, a mãe de Ben, respondeu, enquanto limpava a boca com um guardanapo de papel, em sua típica voz baixa e suave. Ela não gostava dos antigos vizinhos. Diferente do pai, ela quase nunca saía, e ensinava Ben pessoalmente, para ele não ter que ir à escola.

   — Eles têm uma filha que parece ter a idade de Ben. Pensei que talvez pudessem ser amigos.

   — Sabes que nosso filho não precisa de amigos  —  a voz de Lara agora mostrando firmeza e até uma ligeira irritação  — não amigos para debochar e provocá-lo por não poder sair ao sol. Não é a verdade, Ben?

    Ben concordou com um aceno. Verdade? Mentira? Que diferença fazia. Ele vivia praticamente preso àquela casa. Como saber se seria bom ou ruim conversar com pessoas de sua idade?

   Pediu licença para sair da mesa e voltar a seu quarto. Pelo menos agora ele tinha uma tevê e podia assistir o que quisesse.

   À noite, às vezes Ben abria a janela, para olhar as estrelas e sonhar com mundos distantes, como os que lia nos livros que a mãe comprava a seu pedido — ele só saia a noite, e mesmo assim nunca para lugares com muita gente, como shoppings centers e livrarias —, mas desta vez ficou apenas deitado em sua cama, esperando o sono chegar. Foi quando ouviu uma batida na janela. Do outro lado, pendurada em um galho de árvore, uma garota de uns doze anos olhava para ele.

         *       *       *

   — Meu nome é Faidha — falou em uma voz suave que um pouco lembrava sua mãe, após ele ter aberto a janela e ela ter entrado no quarto. — Como te chamas?

   — Ben — ele respondeu, sem saber o que mais dizer.

   — Sou tua nova vizinha. Nos mudamos ontem. Há muito tempo que moras aqui? — enquanto falava ela se sentou em sua cama — Bela cama. Adoro como são macias as camas de teu mundo. Quantos cobertores! Faz muito frio à noite?

   Bem permaneceu alguns segundos de boca aberta, sem saber o que dizer, nem o que responder primeiro. Depois começou a gaguejar, até que, por fim, conseguiu falar algo coerente, mas com o cuidado de não elevar a voz, tentando não imaginar o que aconteceria se sua mãe entrasse no quarto naquele momento — você não pode ficar aqui!
 
   — Não posso ficar aqui? Queres dizer, não tenho o poder de ficar aqui? Bobagem! Estou aqui, então não podes dizer que eu 'não posso estar aqui'. No máximo eu 'não deveria estar aqui', não?

   — Não sei. Que seja. Não sei. Você não deve ficar aqui, então. Se minha mãe descobrir, ela vai, tipo, surtar. Surtar completamente. Eu estou surtando. Você não pode, quer dizer, não deve entrar no quarto dos outros pela janela. As pessoas não fazem isso. E por favor, fale baixo.

   — Sempre és tão nervoso? Vou descer e lhe trazer uma água com açúcar. Aproveito e me apresento para tua mãe. Sim?

   — Não. Não, por favor, não. Ela vai surtar. Você tem que ir embora antes que ela apareça. Ela não gosta que eu fale com estranhos.

   — Bem que ela faz. Existem muitas pessoas malucas no mundo, sabias?  — "sim, estou olhando para uma delas", pensou Ben, mas nada falou  —  Mas resolveremos isso — e Faidha se levantou da cama de Ben, deu um passo em sua direção, e estendeu a mão — Seja educado. Dê-me tua mão e me cumprimente. Começaremos de novo.

   Ben obedeceu. O aperto dela era firme, quase ao ponto de machucar.

   — Boa noite, jovem Ben. Meu nome, como disse, é Faidha. Gosto de viajar e conhecer novas pessoas, adoro dormir à luz das estrelas e detesto levantar cedo. E às vezes, quando sei que ninguém está olhando, me vejo a chorar de saudades do meu lar. Ah, e eu não sou deste mundo.

   Faidha disse tudo isso, sem em nenhum momento soltar a mão de Ben, e então complementou — Tua vez agora. Diga-me coisas a teu respeito, e como eu contei algo que nunca falei para ninguém, também terás que revelar um segredo só teu, algo pessoal.

    Ela parecia decidida a não soltar sua mão até ele responder

   — Eu...eu... não sei. Eu tenho treze anos. Gosto de ler. Ficção científica, fantasia, estas coisas. E eu tenho uma doença, não posso pegar sol, nenhum sol, posso até morrer. Por isso eu quase nunca saio  de casa, minha mãe não deixa  — e ele hesitou. Alguma coisa pessoal?  — e eu não tenho amigos. Nenhum amigo. Ninguém. E às vezes eu penso em me matar por causa disso  — "eu falei isso mesmo?", Ben se viu a pensar, " e para uma maluca que eu nunca vi antes?".

   — Percebes? Trocamos segredos. Assunto resolvido, não somos mais estranhos. A proibição de tua mãe não se aplica mais a nós — ela sorriu e, ainda hesitante, Ben sorriu de volta. Era tudo tão surreal, a garota parecia uma avalanche em forma de gente, que Ben não sabia o que dizer.

   — Esta foi uma visita rápida, nos veremos amanhã, mesmo horário, mesma janela.  — ela começou a caminhar para a janela ainda aberta, e então se virou  — Até breve, Ben que não tem amigos  — ela parou no meio da frase, parecendo pensar  — não, muito longo... Solitário Ben. Isso. Até breve, Solitário Ben.

         *       *       *

    — De onde você é, de verdade? de São Paulo? — Era estranho quão fácil era conversar com Faidha, depois do primeiro dia, quando Solitário Ben mais gaguejou que falou. Ele lhe contou tudo sobre sua vida, seus medos, seus sonhos para o futuro, e ouviu cada uma das fantasias dela. Histórias de outros mundos, rainhas descendentes de dragões e povos expulsos de suas terras. Era fantástico, mais real que qualquer livro que ele já havia lido. Mas ele queria conhecer a verdadeira garota, não apenas a fantasia que ela inventou.

    — Achas que estou a mentir?  — Sua voz se elevando enquanto ela se colocava de pé, e Solitário Ben, receoso que, após mais de uma semana de encontros escondidos, desta vez sua mãe ouvisse alguma coisa, pediu novamente para falarem apenas em sussurros.

   — Olha, assim, tipo, não fica braba, tá? Eu adorei ouvir, é demais! Quer dizer, uma guria entra pela minha janela, e me diz que sou filho da rainha de uma terra distante, e que posso salvar seu reino. É tudo que qualquer um quer ouvir. E adorei, sério. Mas eu queria conhecer você, a você de verdade.

   — Essa sou a eu de verdade, Solitário Ben — ela falou mais alto que o som da tevê, sempre ligada para disfarçar — e és filho de quem és. Mas, se preferes viver esta não-vida, é tua a decisão, não?

   Dizendo isso, indiferente aos pedidos de desculpa de Solitário Ben, e sem se despedir, Faidha saiu pela janela.

         *       *       *

    "Os dragões se alimentam de medo, e só podem ser derrotados por aqueles com um coração de dragão, como o teu". Dizendo isso, Faidha havia encostado o dedo com força na marca no peito de Solitário Ben.

    "Isso é só uma marca de nascença", ele havia dito. "Não", ela negou, balançando a cabeça, "é um sinal de que és filho de Lahara, nossa rainha. É um sinal de que descendes de dragões,  e que eles não podem se alimentar de teu medo. Nem lhe fazer mal".

    Com Faidha caída, desacordada após ser arremessada contra uma parede, e um dragão ocupando quase toda a câmara do castelo, espremendo Solitário Ben e sua espada em um canto, as palavras pareciam vazias e distantes.

   Mesmo neste momento ele não estava arrependido. Faidha disse que seria perigoso quando abriu um portal para seu mundo — mundo dos dois, ela havia dito —, provando de uma vez por todas que — palavras dela — fosse maluca ou não, não era mentirosa. Mas ele estava com medo. E o dragão se alimentava de medo.

   — Aqui não deverias ter vindo — a voz do dragão era sibilante, como se imaginaria uma cobra a falar — Ousarás lutar? Erga, então, a espada. Ataque.

   Solitário Ben levantou sua espada, presente de Faidha — mas você não vai precisar dela, vamos apenas entrar e sair, antes que o dragão nos veja — e o Dragão golpeou. Foi como se seu braço estivesse sendo arrancado.

   Quando voltou a si, estava caído, o braço sangrando, a espada jogada longe. E a pata do dragão, levantada, prestes a esmagá-lo.

   Foi quando ouviu a voz de sua mãe.

         *       *       *

   — Acaso, agora, os todo-poderosos dragões combatem simples crianças? — Era a mãe de Solitário Ben a falar. Mas parecia diferente, mais bonita, seu cabelo mais longo, um leve brilho a percorrer seu corpo. Talvez fosse apenas a tontura que agora parecia dominá-lo.

   — Simples criança um filho teu, Lady Lahara? Por nosso pacto, manterias daqui teus filhos longe. Achas que a marca de teus descendentes é proteção absoluta?

   — E acaso, Kothinotharo, uma falsa marca no peito de uma criança trocada na maternidade é suficiente para enganá-lo? Perdeste o olfato nesses longos anos? — Dito isso, o dragão aproximou sua face de Solitário Ben, até quase encostar em seu rosto.

   — Falas verdades. Uma criança humana apenas, não filho teu. Não quebrastes o pacto. Mas ousou invadir ele o meu castelo.

   — Assim como eu ousei. E a criança está sob minha proteção.  Vais me enfrentar pela vida dela?

    O Dragão pareceu hesitar um instante, antes de responder — Não. Tal dissestes, não filho teu. Partir podes, levando-o; nada por que lutar aqui.

    — E Faidha? — Solitário Ben tentou falar, mas a voz não lhe saiu. E tudo desapareceu em escuridão.

         *       *       *

    O sangue escorria de seu braço, de dois cortes profundos das garras do dragão, e caia na neve. Foi o que Solitário Ben viu, ao despertar, carregado nos braços de sua não-mãe. Mas a dor não importava. O que ia acontecer com Faidha?

   — Estamos distantes o suficiente. O portal não pode ser aberto dentro do castelo, mas suponho que isso aquela garota já lhe mostrou. Não importa, ela terá o que merece. — Dizendo isso, sua não-mãe o colocou no chão.

   — Nós temos que voltar. Não podemos deixá-la — a voz de Solitário Ben estava fraca, mas audível. Sua não-mãe fingiu não ouvir, e começou a falar em uma língua estranha, a mesma que Faidha usou, mas com mais naturalidade, e um portal se abriu na frente dos dois.

  — É hora de partirmos. — E, pegando Solitário Ben pelo braço não machucado, o arrastou consigo através do portal.

         *       *       *

   Ele se soltou de sua mãe com um movimento rápido. Saltou de volta, e o portal se fechou a suas costas. A neve macia o abraçou, recebendo-o neste mundo que não era o seu.

   Agora, estava na entrada do castelo, o mundo a girar, as pernas trêmulas. Antes, com Faidha, havia escalado uma parte desmoronada da muralha, na crença que o dragão não os perceberia.

   Não havia funcionado.

   Solitário Ben entrou no castelo em passos firmes, ignorando a tontura, e gritou.

   —  Thinoqualquercoisa! Dragão! Como quer que se chame, estou aqui!

   — Novamente desafias-me, criança?  — o som veio de trás, e ao se virar, Solitário Ben viu o rosto do dragão a centímetros do seu. Ele não recuou.

   — A garota. Deixe-a ir.

   — Vieste, garoto, por isso? Por sua amiga irás me enfrentar, quando fostes já derrotado uma vez?  — uma fumaça negra saía das narinas da criatura, quase impedindo Solitário Ben de respirar.

   — Faidha me disse que você se alimenta de nossos medos. Eu não tenho medo, dragão.

   — É doce o medo que finges não ter. Mas maior por sua amiga é ele. Eu gosto disso, da coragem tola  — e o Dragão encosta sua pata no coração de Solitário Ben, na marca — falsa marca — de nascença.

   — A garota, Faidha...

   — O povo de sua não-mãe, em falsas lendas, chama quem carrega a marca que imitas de descendentes de dragões. Acreditam, talvez, verdade. É marca, porém, apenas daqueles - e seus filhos - que, de um dragão, conquistaram respeito.

   — Você vai deixá-la ir?

   — Sim. E um outro presente lhe dou também.

   E um calor começou a crescer no peito de Solitário Ben, até se espalhar por todo seu corpo e consumi-lo por completo. E tudo se tornou fogo.

         *       *       *

   Solitário Ben ficou apenas poucos dias na casa que outrora considerou sua. Estava tão fraco, ao chegar, que não teria conseguido dar mais que poucos passos.

   Agora, mochila nas costas, braço em tipoia, um último abraço a despedida de sua não-mãe, atravessou o portão de sua casa. Não temia mais o sol. Fosse mentira de sua não-mãe, ou curado estivesse pelo dragão, ou mesmo que o sol o queimasse por inteiro, ele não tinha mais medo.

   À sua espera, também uma mochila nas costas, Faidha.

   — Vamos, Ben. Que mundo vamos visitar primeiro?

   —  Ué, não sou mais "Solitário" Ben?

   Faidha nada falou, apenas segurou sua mão, seu sorriso a resposta que os acompanhou na jornada por todos os mundos:

   —  Não enquanto tiveres a mim.



terça-feira, 2 de junho de 2015

O Preço da Vida Eterna

   Onde estou?

   A pequena mão segurando a minha é familiar. O leve toque de seus dedos minúsculos enquanto caminha ao meu lado é uma lembrança que jamais esqueci. A criança move os lábios em um sorriso que também está gravado para sempre na minha mente, intacto, como se o tivesse visto ontem, tão nítido quanto uma memória de implante cibernético.
Eu tinha treze anos, ela tinha dez, e aquele era o pior dia da minha vida.

   "Computador, por que estou revivendo isso?"

   "São suas lembranças, presidente Arthur. Não é por isso que está aqui? Para preservar sua vida para sempre?"

   Eu caminho com minha irmã até a recepção do prédio. Eles me param por causa do meu olho esquerdo, e eu tenho que tirá-lo e entregar aos guardas, que o colocam em uma máquina. Na época eu não entendia muito bem, mas hoje sei que estavam verificando se não havia nenhum vírus instalado.

   Eu ponho o olho de volta, de costas para minha irmã, envergonhado. Fazia menos de um ano que eu havia vendido meu olho e recebido este no lugar, e ainda tinha vergonha de usá-lo.

   "Eu não quero reviver isso. Computador, traga-me outra memória."

   "Esta não é a memória mais importante da sua vida, Thur?"

   "Não me interessa. Mostre-me qualquer outra coisa."

   "Muito bem."

   Estou em outro lugar. Sou outra pessoa e o garotinho assustado é agora uma lembrança distante. Mas o computador não escolheu nenhum dos grandes momentos da minha vida. Não foi quando assumi a presidência da Petro-Sekai, a maior corporação que a humanidade já viu, e me tornei um dos homens mais ricos do mundo. Nem quando ajudei a construir a primeira colônia humana independente fora da Terra. Não, o computador me levou à reunião em que me mostraram o procedimento que salvaria minha vida, poucas semanas atrás.

   "Isso é inútil, computador. Que importância tem esta memória?"

   "Shh, calma, tenha paciência comigo, Thur".

   Na minha frente, o médico respondia minhas perguntas com precisão e segurança.

   - Nós estamos chegando perigosamente perto do limite da extensão de vida em um substrato orgânico, presidente. Mesmo que todas suas lembranças das últimas décadas estejam armazenadas em circuitos quânticos, a estrutura neural principal de seu córtex ainda é puramente biológica. Haverá o momento em que sua equipe não conseguirá mantê-la estável. Se continuar com sua mente essencialmente composta de neurônios naturais, você certamente morrerá em algum momento nos próximos meses.

   - A versão de imortalidade que sua empresa oferece, Doutor Howard, não me interessa. Não tenho nenhum interesse em que vocês criem um computador quântico que emule minha mente.

   - Hoje, nós podemos fazer muito mais que isso, presidente. O que estou propondo é algo que nunca foi feito antes, ou pelo menos não em seres humanos. Estou propondo substituir seus neurônios, à medida que morrem, um por um, por neurônios quânticos. É mais que uma emulação. Perto disso, os circuitos quânticos que todos nós utilizamos para manter registros de nossas memórias são tão primitivos quanto eram os computadores digitais.

   "Eu sei muito bem dessa reunião. É por isso que estou aqui, neste cenário virtual, enquanto recebo a primeira carga de neurônios, para facilitar minha adaptação. Mas ficar me mostrando estas lembranças tem algum objetivo?"

   "É claro que tem, Thur. Tudo está conectado. Veja, vamos voltar à sua primeira memória".

   Antes que eu possa protestar, o computador projeta uma nova recordação. Sou de novo aquela criança de 13 anos, com um olho e órgãos artificiais substituindo partes vendidas em uma época que comprar órgãos era mais barato que construí-los. E eu estava prestes a vender minha parte mais preciosa. Minha alma.

   - O que vocês vão fazer com ela?

   - Garoto, você vai receber mais dinheiro do que jamais iria juntar em toda sua vida, mesmo se vivesse mil anos. O suficiente para nunca mais se preocupar com a próxima refeição. Por este preço, posso lhe assegurar que estamos pagando muito bem por sua irmã, e lhe garanto que ela será valiosa demais para simplesmente vendermos pedaços dela.

   "Pare! Eu não preciso lembrar isso de novo. Vejo cada vez que fecho meus olhos. Sonho cada vez que durmo. Por que está me mostrando isso?"

   "Nós temos algum tempo até podermos despertar seu cérebro, Thur. Estas lembranças são importantes. Vamos ver mais uma."

   O mesmo homem está caminhando comigo por uma enorme instalação. Estou assustado. Ele fica falando sobre como vou viver dentro de uma máquina e me tornar uma das pessoas mais importantes do mundo.

   "Isso nunca aconteceu, eu nunca mais vi aquele homem!"

   "Não, você não viu mais ele. Nem ele nem sua irmã, que ficou na outra sala, esperando você voltar. Esperando por toda uma vida".

   "Computador, pare imediatamente. Isso é uma ordem. Quero um contato com um supervisor!"

   "Não."

   "Você não pode me desobedecer."

   "Veja suas memórias, Thur. Veja suas memórias".

   Estou com 195 anos, ouvindo novamente as explicações do médico das Indústrias Vida Eterna. Estou com 13 anos, vendendo minha irmã pelo dinheiro que me daria a chance de construir uma vida para mim.

   195 anos. Um médico no uniforme azul claro com o discreto logo vermelho das Indústrias Vida Eterna ocupa toda minha visão.

   13 anos. Um homem vestindo um uniforme no mesmo tom de azul sorri enquanto me cumprimenta pela minha decisão, e eu me lembro da única pessoa que me chamava de Thur.

   E então eu entendo, antes mesmo que ela fale.

   "Você vai despertar agora, Thur, e um pedacinho minúsculo de sua mente não será mais sua. Uma pequena fração de seus neurônios será uma outra pessoa em seu lugar, e cada vez que você vier aqui, vou tirar um pouquinho mais de você."

   "E vou colocar um pouquinho mais de mim."

   "E assim vou pegar de volta a vida que você me tirou, irmão".

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